A recuperação judicial, disciplinada pela Lei nº 11.101/2005, tem como objetivo viabilizar a superação de dificuldades econômico-financeiras da empresa em crise, mantendo sua função social e preservando empregos. Contudo, surges dúvidas sobre o tratamento dos produtos do crime – bens adquiridos ou utilizados em práticas ilícitas – durante o processo de recuperação. Este artigo analisa se tais bens podem ser incluídos no concurso de credores, bem como as consequências jurídicas dessa inclusão ou exclusão.
A recuperação judicial é um instrumento previsto na Lei nº 11.101/2005, que estabelece regras para:
- Suspender execuções e ações contra o devedor;
- Permitir a negociação coletiva entre devedor e credores;
- Proporcionar a reorganização da empresa em crise.
Por outro lado, o “produto do crime” ou “coisa” apreendida em investigação de ilícitos penais não integra o patrimônio legítimo do ofensor, porque foi obtido de forma ilícita. Portanto, surge a questão central: esses bens ou valores podem figurar no ativo da recuperanda e, consequentemente, no quadro de credores?
O conceito de produto do crime está definido no Código Penal (art. 91), como:
“Tudo aquilo que o crime produziu, direta ou indiretamente, incluindo o lucro obtido pelo agente.”
Exemplos comuns em empresas que ingressam com pedido de recuperação judicial:
- Veículos furtados ou roubados e vendidos pela recuperanda;
- Documentos falsificados (duplicatas simuladas) para fins de obtenção de crédito;
- Dinheiro ou bens provenientes de cartel ou fraude em licitações;
- Valores desviados mediante fraude bancária ou falsificação de contratos.
A característica essencial do produto do crime é a sua natureza ilícita, que impede o agente de adquirir direitos sobre o bem ou valor; eles permanecem pertencentes às vítimas ou ao Estado, mediante confisco.
A Lei de Recuperação Judicial, em seu art. 6º, §1º, veda a inclusão de bens que não integrem o patrimônio da recuperanda. Como produtos do crime não têm origem lícita, não compõem o ativo da empresa em crise. Desse modo:
- Não são objeto do plano de recuperação: Bens ilícitos devem ser excluídos do plano de pagamento de credores.
- Não podem ser oferecidos como garantia: Hipoteca ou alienação fiduciária sobre produtos do crime é nula, pois não há propriedade válida.
- Sujeição a procedimentos penais: Compete ao Ministério Público apurar e promover a ação penal, conforme art. 187 da Lei nº 11.101/2005.
Portanto, a indisponibilidade desses bens no âmbito cível possibilita sua restituição às vítimas ou confisco pelo Estado, sem prejuízo das medidas de recuperação.
O processo de recuperação judicial prevê a classificação dos credores em classes (créditos trabalhistas, quirografários, com garantia real etc.). No entanto, as vítimas de crime não constituem “credores” da recuperanda, mas sim titulares de direito de restituição ou indenização, seguindo o procedimento criminal ou civil cabível:
- Restituição direta: Quando detectado o bem ilícito, ele é devolvido à vítima ou apreendido, sem passar pelo conselho de credores.
- Ação civil de perdas e danos: Caso a devolução não seja prática, as vítimas podem ajuizar ação autônoma para ressarcimento pelo valor de mercado do bem.
A inclusão de produtos do crime como créditos quirografários ou quirografários especiais representaria ofensa à finalidade da recuperação e ao princípio da separação das esferas cível e penal.
Além do aspecto cível, a Lei nº 11.101/2005 estabelece que:
Art. 187. Compete ao Ministério Público promover a ação penal ou requisitar a abertura de inquérito policial, imediatamente após a identificação de indícios de crime no âmbito do processo de recuperação.
Isso implica:
- Notificação imediata ao MP pela própria recuperanda ou por qualquer credor;
- Suspensão do tratamento dos bens ilícitos no plano de recuperação, até solução criminal;
- Encaminhamento de cópia dos documentos ao juízo criminal competente.
Assim, a coexistência do processo de recuperação e da investigação penal deve respeitar a independência das instâncias, garantindo a eficácia do princípio da indisponibilidade dos bens.
Um exemplo emblemático envolveu a Recuperação Judicial da Gas Consultoria, em que foram apreendidos bens supostamente frutos de crimes de estelionato. Os credores sustentavam que tais valores integravam o ativo recuperando, enquanto a União requereu a exclusão dos bens do processo. O TJSP decidiu que:
- Os bens procedentes de ilicitude não poderiam ser submetidos ao plano de recuperação;
- A restituição caberia diretamente às vítimas ou ao erário, conforme regular apuração penal;
- A classificação desses créditos ficaria prejudicada até o trânsito em julgado da ação penal.
Essa decisão reforça o entendimento de que a efetividade da recuperação judicial não se sobrepõe à necessária reparação dos ilícitos penais.
A análise do produto do crime na recuperação judicial demonstra que:
- Não integram o patrimônio recuperando e, portanto, não podem ser objeto do plano de recuperação;
- Devem ser mantidos fora do concurso de credores, assegurando-se a restituição ou o confisco pelas vias adequadas;
- Compete ao Ministério Público a investigação e propositura da ação penal, garantindo o princípio da indisponibilidade.
Compreender esses aspectos é essencial para advogados, administradores judiciais e demais operadores do direito empresarial, pois evita litígios desnecessários e fortalece a segurança jurídica do procedimento.
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